15
Nov 08

Já aqui falámos alguma coisa de Nuno Júdice, poeta do Algarve. Hoje apeteceu-nos dar alguma continuação a este poeta, explorando o universo de outros livros seus. Espero que gostem desta nossa selecção de hoje.

 

 

AUSÊNCIA

 

Quero dizer-te uma coisa simples: a tua

Ausência dói-me. Refiro-me a essa dor que não

Magoa, que se limita à alma; mas que não deixa,

Por isso, de deixar alguns sinais - um peso

Nos olhos, no lugar da tua imagem, e

Um vazio nas mãos, como se as tuas mãos lhes

Tivessem roubado o tacto. São estas as formas

Do amor, podia dizer-te; e acrescentar que

As coisas simples também podem ser complicadas,

Quando nos damos conta da diferença entre o sonho e a realidade.

Porém, é o sonho que me traz a tua memória; e a

Realidade aproxima-me de ti, agora que

Os dias correm mais depressa, e as palavras

Ficam presas numa refracção de instantes,

Quando a tua voz me chama de dentro de

Mim - e me faz responder-te uma coisa simples,

Como dizer que a tua ausência me dói.

 

in Pedro Lembrando Inês (2002)

Editora: Dom Quixote

 

 

O AMOR

 

Deus — talvez esteja aqui, neste

pedaço de mim e de ti, ou naquilo que,

de ti, em mim ficou. Está nos teus

lábios, na tua voz, nos teus olhos

,e talvez ande por entre os teus cabelos,

ou nesses fios abstractos que desfolho,

com os dedos da memória, quando os

evoco.

 

Existe: é o que sei quando

me lembro de ti. Uma relação pode durar

o que se quiser; será, no entanto, essa

impressão divina que faz a sua permanência? Ou

impõe-se devagar, como as coisas a que o

tempo nos habitua, sem se dar por isso, com

a pressão subtil da vida?

 

Um deus não precisa do tempo para

existir: nós, sim. E o tempo corre por entre

estas ausências, mete-se no próprio

instante em que estamos juntos, foge

por entre as palavras que trocamos, eu

e tu, para que um e outro as levemos

connosco, e com elas o que somos,

a ânsia efémera dos corpos, o

mais fundo desejo das almas.

 

Aqui, um deus não vive sozinho,

quando o amor nos junta. Desce dos confins

da eternidade, abandona o mais remoto dos

infinitos, e senta-se aos pés da cama, como

um cão, ouvindo a música da noite. Um

deus só existe enquanto o dia não chega; por

isso adiamos a madrugada, para que não

nos abandone, como se um deus

não pudesse existir para lá do amor, ou

o amor não se pudesse fazer sem um deus.

 

in Cartografia de Emoções (2001)

Edições D. Quixote

 

 

 

Nuno Júdice

 

postado pelo Casa dos Poetas às 14:41
Canção:: Gavin Friday -Help
Poesia e Alguns dos Poetas da Casa: ,

07
Nov 08

Há uns dias passámos no Casa dos Poetas um poema de Nuno Júdice. Trocámos depois alguns mails com os nossos leitores e discutimos um pouco a obra deste poeta natural do Algarve. Concordo com aqueles que dizem que o Júdice faz, nas suas obras, um "irresistível apelo ao público feminino". De facto isso acontece, não sei se naturalmente ou por exigências ou conselhos editoriais. Todavia, fora daquela poesia mais romantizada ou até intelectualizada que menos nos agrada (em que o expoente disto é o blogue do próprio Nuno Júdice), há poemas do autor que fazem dele, em nossa opinião, um excelente poeta. Na Casa dos Poetas seleccionámos dois poemas do livro Geometria Variável que espelham, segundo cremos, o que acabámos de dizer:

 

 

CENA DE INVERNO

 

Parada no meio do campo, na tarde de chuva,

a mulher não avança para o meio da estrada, nem recua

para perto da casa. Apanha chuva, com a cabeça virada

para o chão, como se esperasse que a terra a engula,

ou que o céu se esqueça dela, e as nuvens se afastem.

 

Numa tarde de chuva, no meio do campo, há mulheres

que não sabem para onde ir; e entre a casa e a estrada

ficam paradas, ouvindo o ruído da chuva, e pensando

na vida que as levou para o meio do campo, indecisas

entre a terra e o céu, enquanto a chuva não pára.

 

Ao ver a mulher parada no meio do campo, pensei

em chamá-la, para que saísse de dentro da lama; mas

continuei o meu caminho, como se ela não existisse,

sabendo que se parasse ao lado dela também eu olharia

para o chão, até que a terra me engolisse.

 

 

IMAGEM DO MUNDO

 

Vejo o mundo. E ao ver as coisas do mundo,

com a sua realidade própria, vejo também

a diversidade que existe em cada coisa,

distinguindo-a, múltipla ou plural.

como se diz. No entanto, o que eu vejo

é sempre igual ao que eu penso

que o mundo é; e tudo se torna

semelhante, dentro deste mundo que é

o meu, e é sempre diferente do mundo que

existe no pensamento de outro. É por isso

que não penso nas coisas do mundo como

se fossem minhas; e que o deixo para os outros,

para que eles façam o mundo como quiserem,

para que seja diferente do meu, quando o

olho, e o que vejo me restitui o mundo

como eu o quero, diferente do mundo que

os outros pensam.

 

 

Nuno Júdice

Geometria Variável

Publicações Dom Quixote

Lisboa Abril 2005

 

 

 

postado pelo Casa dos Poetas às 14:00
Canção:: Bob Geldof - Great Song of Indifference
Poesia e Alguns dos Poetas da Casa: , ,

31
Out 08

Desejo

 

 

Queria ser essa noite que te envolve; e

cobrir-te com o peso obscuro dos braços

que não se vêem. Um murmúrio

desceria de uma vegetação de palavras,

enrolando-se nos teus cabelos como

secretas folhas de hera num horizonte

de pálpebras. Deixarias que te olhasse

o fundo dos olhos, onde brilha

a imagem do amor.E sinto os teus dedos

soltarem-se da sombra, pedindo

o silêncio que antecede a madrugada.

 

 

Nuno Júdice é um poeta português, natural de Mexilhoeira Grande, localidade próxima de Portimão. Tem-se destacado na poesia, apesar de ter escrito alguma ficção. É professor universitário na Universidade Nova de Lisboa. Este poema integra o livro O Estado dos Campos, publicado pela Dom Quixote.

 

postado pelo Casa dos Poetas às 00:50
Canção:: Little Things - Good Charlette
Poesia e Alguns dos Poetas da Casa: , ,

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