O poeta José Tolentino de Mendonça será o grande destaque das Quintas de Leitura de hoje, 23 de Outubro.
O poeta José Tolentino de Mendonça será o grande destaque das Quintas de Leitura de hoje, 23 de Outubro.
A INFÂNCIA DE HERBERTO HELDER
No princípio era a ilha
embora se diga
o espírito de Deus
abraçava as águas
Nesse tempo
estendia-me na terra
para olhar as estrelas
e não pensava
que esses corpos de fogo
pudessem ser perigosos
Nesse tempo
marcava a latitude das estrelas
ordenando berlindes
sobre a erva
Não sabia que todo o poema
é um tumulto
que pode abalar
a ordem do universo agora
acredito
Eu era quase um anjo
e escrevia relatórios
precisos
acerca do silêncio
Nesse tempo
ainda era possível
encontrar Deus
pelos baldios
Isto foi antes
de aprender a álgebra
A ÚLTIMA CORRIDA
Era um rapaz que partiu
para conhecer o medo
o seu coração arranhado pelas chamas
tropeções de um cego que foge da aldeia
nessa noite
quem conseguiria contar
de comboio em pensamento seguiu para Bréscia
a última corrida de aeroplanos do século
andava à roda de trinta mil libras
e ele queria muito voar sozinho
sobre florestas
ninguém soube mas a sua vida
vista daquele aeroplano maravilhara-o
chegariam os nevões é verdade
novas e novas sombras sobre a terra
mas a sua vida vista do aeroplano era tão grande
como nenhuma outra coisa que conheceu
cá em baixo diziam:
«o seu voo prolonga-se sobre cada floresta
e desaparece
nós vemos as florestas
mas não o vemos a ele»
O SILÊNCIO
Regressamos a uma terra misteriosa
trazemos uma ferida
e o corpo ferido
imprevistamente nos volta
para margens mais remotas
Giorgio Armani tinha declarado
àquele jornal inglês: «o luxo desagrada-me,
é anti-democrático.
Quero agora homenagear os operários de todo o mundo»
Eu só pensava em São João da Cruz
enquanto ouvia pela enésima vez:
«a moda substituiu o luxo
pela elegância»
João da Cruz fala de coroas,
resplendores, casulas
véus de seda, relicários de ouro e
diamantes
para lá do jogo das nossas defesas
qualquer coisa interior
a intensa solidão das tempestades
os campos alagados,
os sítios sem resposta
o teu silêncio, ó Deus, altera por completo os espaços
José Tolentino Mendonça, nasceu na Ilha da Madeira em 1965. É formado em Teologia. Poeta e tradutor. Poesia publicada:
· Os Dias Contados, (posfácio de João Miguel Fernandes Jorge), Funchal, Ed. SREC, 1990.
· Longe não sabia, Lisboa, Ed. Presença, 1997.
· A que distância deixaste o coração, Lisboa, Assírio & Alvim, 1998.
· Baldios, Lisboa, Ed. Assírio & Alvim, 1999.
· De Igual para Igual, (posfácio de Eugénio de Andrade), Lisboa, Ed. Assírio & Alvim, 2001.
· A Estrada Branca, Lisboa, Ed. Assiro & Alvim, 2005.
· Tábuas de Pedra (poemas para imagens de Ilda David’), Lisboa, Ed. Assírio & Alvim, 2005.
· A noite abre meus olhos (posfácio de Silvina Rodrigues Lopes), Lisboa, Ed. Assírio & Alvim, 2006.