Hoje é o dia de falarmos um pouco de Gonçalo M. Tavares, talvez o poeta sub-40 que melhor escreve em Portugal neste momento, com um estilo muito próprio e livros bastante diferentes entre si, todos funcionando como verdadeiros conceitos. Pegámos no Livro da Dança, em "1" e por fim "Investigações Novalis". Para quem quiser ler um tratamento mais científico deste génio da literatura portuguesa, pode seguir para este documento.
86.
interditar a memória.
Tornar a inteligência bela é voltar à não inteligência.
Só é belo o que não é inteligente; porque o inteligente é o não imediato: um passo atrás ou à frente, enquanto o belo é o instante, a superfície tão fina que frente igual a COSTAS, o início é o mesmo que o FIM.
interditar a memória.
a memória é ocupação do espaço.
a memória é o não imediato,
a memória é o inteligente.
O Corpo inteligente é inteligente mas não é corpo porque corpo é estar presente, agora, por completo, e o inteligente, repito o inteligente é o não-imediato, um passo atrás ou à Frente.
a dança não tem Memória.
A criatividade não tem Memória.
O Corpo começa agora no momento que acaba.
O Corpo começa no mesmo sítio que acaba.
O corpo é 1 sítio e 1 tempo e depois 1 outro sítio e 1 outro tempo que não recordam o sítio e o tempo anteriores.
CORPO AMNÉSICO.
Esqueceu porquê aqui e agora.
Aqui e agora e antes nada.
Aqui e agora e depois nada.
CORPO AMNÉSICO e sem projectos.
Cortar-lhe a cadeira dos velhos e o monte donde se vê o FUTURO dos NOVOS.
Um CORPO sem cadeira (não há cansaço porque antes não existiu) e UM CORPO sem VISÃO (o FUTURO é 1 espaço onde ainda não se chegou).
Sem visão não há nenhum lado onde se chegar, e sem cadeira não há sítio onde descansar, portanto só resta ao corpo ser todo aqui e agora e só resta ao corpo dançar.
(Corpo a quem cortaram a cadeira e os olhos).
14.
A história da dança não é, não pode ser, o Percurso dos Movimentos traçado no chão.
É, tem de ser, o Percurso dos Movimentos Traçado no ar.
Acreditar que os Pássaros são resto de COREOGRAFIAS. Imagens do corpo que ficaram atrás, suspensas.
(As nuvens ainda, tudo o que é alto, o céu.)
Os pássaros são restos de COREOGRAFIAS.
in o Livro da Dança
OS MORTOS
Não há mortos que morram tanto como os nossos.
Se um daqueles que nos pertence morre sete
ou setenta vezes no coração,
de quem apenas ouvimos falar morre uma vez, na sua data,
e os que sempre viveram longe
morrem-nos metade ou um oitavo. E metade
de uma morte é quase nada, são casas
decimais no sofrimento. (Que digo? Milésimas, milésimas!)
A MINHA RELIGIÃO É O NOVO
A minha Religião é o Novo.
Este dia, por exemplo; o pôr do Sol,
estas invenções habituais: o Mar.
Ainda:
os cisnes a Ralhar com a água. A Rapariga mais bonita que
ontem.
Deus como habitante único.
Todos somos estrangeiros a esta Região, cujo único habitante
verdadeiro é Deus (este bem podia ser o Rótulo do nosso
Frasco).
Dele também se podia dizer, como homenagem:
Hóspede discreto.
Ou mais pomposamente:
O Enorme Hóspede discreto.
Ou dizer ainda, para demorar Deus mais tempo nos lábios ou
neste caso no papel, na escrita, dizer ainda, no seu epitáfio que
nunca chega, que nunca será útil, dizer dele:
em todo o lado é hóspede,
e em todo o lado é Discreto.
in Investigações Novalis
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