28
Fev 09

Sobre o dia a mão trémula do sol

semeou alguns objectos

eu tive uma vez um barco

para essas águas

e sabia melhor que ninguém as marés

os mistérios do nevoeiro

teus dedos

e foi-me melhor que um filho

ou um cavalo

 

estendi as mãos e toquei os frutos

só voar me foi interdito pelos deuses.

 

Manuel Afonso Costa

in Os Últimos Lugares

 

 

 

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postado pelo Casa dos Poetas às 12:47
Canção:: The Clash - Rock the Kasbah
Poesia e Alguns dos Poetas da Casa: ,

26
Fev 09

 

 

OS AMANTES INADEQUADOS

 

Os meus amantes nunca

foram belos,

magros, de veias grossas,

esculpidos em osso,

dramáticos, ternamente trágicos

até ao sorriso.

Os meus amantes eram difíceis,

resistiam de modo selvagem

para logo se entregarem,

resignados e impossíveis,

com a altivez domesticada,

a cabeça em baixo

olhando o meu sexo,

destruídos pelo desejo

mais poderoso que o espírito.

Tristes.

Nenhum conquistou

os meus demónios,

abriu as minha folhagem débil

e entrou

para não sair.

Nenhum me fez fanática

do seu sexo,

me desviou a luxúria

para o centro da sua boca,

concentrou a surpresa

nos seus passos arrastados,

o prazer, no som

da sua voz categórica,

na gravidez dos seus olhos.

Nenhum me fez habituar-me aos seus costumes,

me criou a necessidade de o necessitar,

e por fim se ofereceu a ministrar-me

a dose de si mesmo que

me faria depender-lhe, nem

tampouco me instalou

um tumor benigno

no útero.

E agora tudo é diferente,

tudo é diferente.

E já não estou

Só.

 

Eva Vaz

(com tradução de Tiago Nené)

 

 

 

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postado pelo Casa dos Poetas às 08:47
Canção:: AC/DC - Ballbreaker
Poesia e Alguns dos Poetas da Casa:

25
Fev 09

 

 

 

Querer-te é sentar-me na praça, logo de manhã,

só para te ver passar

Querer-te é os teus olhos, o teu sorriso cúmplice,

as tuas palavras

Querer-te é também não me veres, se por acaso

alguém está perto

Querer-te é haver sol e vento e estrelas. É o verde

das acácias e das palmeiras e as rosas de Jericó

alinhadas até à ponta das dunas

Querer-te é o castanho doce dos figos sobre a mesa,

as tâmaras, a voz da grande Kolthoum vinda de uma

janela num cântico apaixonado ao Nilo

Querer-te é haver noite - ah, sobretudo a noite! E é

o teu corpo nu, exausto, branco como um templo,

porque todos os corpos são um templo no solo

consagrado que há

Querer-te é o sorriso no rosto das crianças, o grácil

e dançante caminhar das mulheres, a fonte, as águas

Querer-te é tudo, até o meu desejo de te não querer

 

Victor Oliveira Mateus

in Os Dias do Amor – um poema para cada dia do ano

Ministério dos Livros Editores

(gentileza do blogue Modus Vivendi)

 

 

 

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postado pelo Casa dos Poetas às 09:00
Canção:: Radiohead - Videotape
Poesia e Alguns dos Poetas da Casa: , ,

24
Fev 09

 

Sonho de uma terça-feira gorda

 

Eu estava contigo. Os nossos dominós eram negros,

[ e negras eram as nossas máscaras.

Íamos, por entre a turba, com solenidade,

Bem conscientes do nosso ar lúgubre

Tão constratado pelo sentimento felicidade

Que nos penetrava. Um lento, suave júbilo

Que nos penetrava... Que nos penetrava como

[uma espada de fogo...

Como a espada de fogo que apunhalava as santas

[extáticas.

 

E a impressão em meu sonho era que estávamos

Assim de negro, assim por fora inteiramente negro,

— Dentro de nós, ao contrário, era tudo claro

[ e luminoso!

 

Era terça-feira gorda. A multidão inumerável

Burburinhava. Entre clangores de fanfarra

Passavam préstitos apoteóticos.

Eram alegorias ingênuas, ao gosto popular,em cores cruas.

 

Iam em cima, empoleiradas, mulheres de má vida,

De peitos enormes — Vênus para caixeiros.

Figuravam deusas — deusa disto, deusa daquilo, já tontas e seminuas.

 

A turba, ávida de promiscuidade,

Acotevelava-se com algazarra,

Aclamava-as com alarido.

E, aqui e ali, virgens atiravam-lhes flores.

 

Nós caminhávamos de mãos dadas, com solenidade,

O ar lúgubre, negro, negros...

mas dentro em nós era tudo claro e luminoso!

Nem a alegria estava ali, fora de nós.

A alegria estava em nós.

Era dentro de nós que estava a alegria,

— A profunda, a silenciosa alegria...

 

Manuel Bandeira

 

 

 

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postado pelo Casa dos Poetas às 06:28
Canção:: The Beatles - Help
Poesia e Alguns dos Poetas da Casa:

23
Fev 09

MARGEM

 

Dantes, quando pousavas

Em qualquer beira, como pássaro

Magnífico;

 

E o teu corpo, os seus poros,

Atraíam as ondas,

Os uivos litorais dos bandos;

 

Dantes, quando era possível

Cantar uma ária inteira

Caminhando sempre na mesma praia

Sem vir ninguém,

 

A não ser o inverno, as suas

Grandes ondas gordas, azuis, paradas;

 

E as rochas em que te sentavas

Em risco de rasgar a pele nas asperezas,

Eram também azuis;

 

E o teu olhar puxava a camisola para baixo,

Como se fingisses proteger-te da nudez

Perante um eu, um mim, que de facto

Acalentavas já dentro de ti.

 

Dantes, quando eu olhava os teus pés

Como um sinal da fragilidade em que assentava

Toda a tua arquitectura,

 

E te dizia: é bom que eu os veja já com saudade,

Para não ser mais tarde surpreendido;

 

E mais tarde apenas me repetir

Quando te vir de novo pousar sobre a falésia

Como um pássaro, para me visitares

 

E, tal como hoje, não me dizeres nada:

 

Porque, contra tudo o que seria de esperar

Me possuis, e a tua presença bate aqui —

 

Como uma maresia distante, como uma praia

À noite, para um cego que não sabe

O que vai acontecer,

 

Mas no entanto caminha

Na aspereza das rochas,

 

Fascinado pelo iodo, pelo ruído

De um outro mundo

Que vem dar a este limite:

 

O tacto, as nádegas sobre a rocha.

Esse conhecimento.

 

Vítor Oliveira Jorge

(vencedor do VIII Concurso de Textos de Amor)

 

 

 

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postado pelo Casa dos Poetas às 12:00
Canção:: Andreas Johnson - People
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22
Fev 09

 

Cocktail Bukowski

Naquele dia
Vestira o meu corpo
Sem a alma,
Vestira o meu corpo
Sem a alegria,
Lavei os dentes
E esqueci do sorriso no lavatório,
Lavei as mãos
E deixei o tacto na toalha;
Nesse dia
Após o trabalho fui dormir,
Deitei o corpo
E reecontrei a alma.
No dia seguinte
Vesti a alma
E deixei metade do corpo esquecido
E a memória no secador de cabelo...
E algo inesquecível de que não me lembro aconteceu:
Porque hoje tenho a alma mutilada
E nem o corpo tenho.

Tiago Nené

(publicado na revista big ode # 5)

 

 

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postado pelo Casa dos Poetas às 00:08
Canção:: isaac hayes, hot buttered soul, 'walk on by'
Poesia e Alguns dos Poetas da Casa: , ,

Não sei como dizer-te que minha voz te procura

e a atenção começa a florir, quando sucede a noite

esplêndida e vasta.

Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos

se enchem de um brilho precioso

e estremeces como um pensamento chegado. Quando,

iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado

pelo pressentir de um tempo distante,

e na terra crescida os homens entoam a vindima

- eu não sei como dizer-te que cem ideias,

dentro de mim, te procuram.

 

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros

ao lado do espaço

e o coração é uma semente inventada

em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,

tu arrebatas os caminhos da minha solidão

como se toda a casa ardesse pousada na noite.

- E então não sei o que dizer

junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.

Quando as crianças acordam nas luas espantadas

que às vezes se despenham no meio do tempo

- não sei como dizer-te que a pureza,

dentro de mim, te procura.

 

Durante a primavera inteira aprendo

os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto

correr do espaço -

e penso que vou dizer algo cheio de razão,

mas quando a sombra cai da curva sôfrega

dos meus lábios, sinto que me faltam

um girassol, uma pedra, uma ave - qualquer

coisa extraordinária.

Porque não sei como dizer-te sem milagres

que dentro de mim é o sol, o fruto,

a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,

o amor,

que te procuram.

 

Herberto Helder

in Poesia Toda

 

 

 

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postado pelo Casa dos Poetas às 00:01
Canção:: Adriana Calcanhoto - Vambora
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