São os votos da Casa dos Poetas
Duas vezes nada
"É assim, amiga. Encontramo-nos
quando calha nos bares de antigamente,
deixando que sobre o tampo azul
das mesas volte a pousar
um baço cemitério de garrafas.
Constatamos o pior, os seus aspectos.
Corpos e livros que foram ficando
por ler na voracidade da noite de Lisboa.
De facto, crescemos em alcoolémia,
acordamos tarde, em pânico,
e perdemos os dias e os dentes
com uma espécie de resignação.
Não temos, ao que parece, serventia.
Sorrimos um pouco, ao terceiro
gin, como quem renasce para a morte,
seus gestos de ternura ou de exuberância.
Talvez tenhamos calculado mal
o ângulo da queda, esta vitória
sem nobreza dos venenos todos.
Mas agora é tarde. Tudo fechou
para nós, para sempre. O amor,
o desejo, até o onanismo da destruição.
Antes de procurares a esmola
do último táxi, fica esta imagem
parada, a desvanecer-se
no frio mais frio da memória:
não dois corpos sentados a trocarem
medo, cigarros e palavras póstumas,
mas duas vezes nada, ninguém,
o silêncio da noite destronando
as cadeiras onde por razão nenhuma
nos sentámos. Os anos, amiga, passaram."
Assírio & Alvim,
Lisboa,
2002
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O LIMIAR DA RESISTÊNCIA
Então Dédée disse que ia preparar nescafé. Alegrei-me por saber que pelo menos têm uma lata de nescafé. Sempre que uma pessoa tem uma lata de nescafé percebo que não está na última miséria; ainda pode resistir um pouco.
(Argentina, 1914 – 1984)
Blow-up e outras histórias
(Publicações Europa América, 1968)
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COMETAS
No dia em que a notícia chegou com seus punhos de fogo
O homem viu à transparência das lágrimas
A sua imagem real.
No dia em que o deserto invadiu o cérebro
Do homem crédulo e ele se tornou incrédulo
Colheu pressuroso o derradeiro ramo de rosas bravas.
No dia em que outro homem o violentou, homem
Na convicção de o ser, perguntou-me porquê
E olhou as estrelas.
No dia dos cometas perdidos, o homem esperou.
Determinou perder-se também.
in Voltei à Casa Pequena
1999
Editorial Diferença
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O AMOR DAS LETRAS
Sento-me debaixo da aprazível luz
da janela. Leio com paciência
e com amor cada um dos versos
do livro aberto entre as minhas mãos.
Logo, nesta quietude do dia penso
que não é moderna esta maneira
de falar do homem que na sua solidão
descansa e reflecte. Sei que haverá
quem a favor de tempos mais modernos
acenda fogos onde agora apenas
ardem tíbios fulgores que novembro
colocou na janela. Deixo o livro
sobre a mesa e detenho-me um pouco
no prazer de contemplar a vida,
a outra vida que filtra as palavras
como un espelho velho. De longe chega
o amor e o aceito como aceito o ar
frio que anuncia a chegada
da noite, o amor
dos livros lidos e esquecidos.
Antonio Aguilar Rodríguez
in Revista El coloquio de los perros
Tradução de Tiago Nené
Antonio Aguilar Rodríguez é natural de Múrcia, Espanha, e nasceu em 1973
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ALARMES
não desenroles tanto a noite
em tua pele. não equipares ao corpo
o tropel das palavras
na toalha. não encalhes em mim
tanta beleza. aperta
a blusa. recolhe do meu rosto
os teus olhares, alguma lágrima
brilhando sobre a mesa.
sossega. é cedo ainda
para o deserto trepidante
do desejo. não julgues saber já
que desenlaces
o meu corpo procura
sobre o teu. nem eu te ofereço
o armadilhado morango
do amor. apenas peço
que adormeças,
que dês lugar na cama
ao meu fantasma.
coloca o coração
numa órbita prudente. talvez não tarde
o tempo,
o lugar onde eu te diga
as palavras que desligam
os alarmes que instalei
em toda a alma.
Luís Miguel Queirós
in As Imagens Dominantes
Lisboa 1991
Editora exercício de dizer
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Luís Filipe é alto para a sua idade
Dá-lhe alguns cêntimos
O seu chapéu será demasiado pequeno
Dá-lhe duas gravatas
Mentirá todos os dias
Dá-lhe outro cachimbo
A sua mãe chorará
Dá-lhe um par de luvas
Perderá os seus sapatos
Dá-lhe café
Terá lâmpadas
Dá-lhe um corpete
Levará um colar
Dá-lhe suspensórios
Tratará de ratos
Dá-lhe uma pá
Subirá ao avião
Dá-lhe sopa
Fará uma estátua
Dá-lhe uns cordões
Comerá groselha
O senhor Luís Filipe
Que vive de pílulas e de pastas
Come a sua mãe
E perde o tempo caminhando.
Benjamin Péret
(Tradução de Tiago Nené)
Benjamin Péret é um poeta surrealista francês e um dos fundadores desse movimento.
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