05
Ago 13

CARTA AO FILHO

 

filho, já não há sangue do meu correndo nas tuas veias,
há uma humidade opaca nesta ferida,
sinto-me um sopro enchendo a fissura da rocha que sou;
filho, havia ainda um último fósforo, uma dúvida
mais transparente que o ar, a única que não pode haver
entre um pai e um filho, uma árvore ardendo
no meu amor;
filho, hoje o teu rosto parecido com o meu
perdeu os pilares que seguravam as nossas parecenças
e toda a respiração se desmoronou;
filho, meu único filho, perdoa-me hoje
o que sinto de ontem, um desamor injusto e selvagem,
cravado na memória, retroactivo;

 

o teu pai

 

*

 

CRIATURÁRIO


limpamos o sujo do nosso vinil
com a ilha nua que as mãos formam;
a música não nos atinge; as metáforas
sabem a mercúrio, os hábitos são ecos
de delfim;
a palavra reflecte o homem,
o homem há muito que deixou
de reflectir a palavra, desde que o vento
pediu às nuvens que inventassem outra vez
o amor, sem respeito pelas situações
adquiridas ao abrigo das leis anteriores;
o nosso amor antigo tem lascas,
o desamor actual tem corrosão verde;
hoje desapertamos todo o esforço do mundo
e pelas mãos entramos no disco de vinil;
e sempre que alguém se aperceber
de um pequeno salto na agulha, somos nós
evitando uma onda;

 

*

 

O JARDIM DE MONET

 

o homem procura a saída como a flor
procura a sombra, e o frio a manhã
como o corpo procura um cardume de memórias
gastando a distância entre elas; o homem procura
a saída, como o paraíso as montanhas, e o cão
o jardim de monet, e o gato vê do
telhado os turistas olhando a história, apreciando
a beleza do rei; o homem procura a saída
na pequena falta de cerâmica do mundo
como as páginas do livro que se tornam
planícies e depois vales; o homem procura a saída
depois dos arbustos da púbis, seguindo
o pássaro com o seu coração no bico, bem para lá
do ventre; saberá o pássaro o lugar exacto
de onde retirou o coração? será este o mesmo
corpo? leva tempo e o homem esquece o coração
e procura a saída, talvez como o gesto enlutado
que procura a sua cor, e a cor que procura
sintonizar a tonalidade apropriada para a circunstância;
o que é certo é que o homem procura a saída
com a respiração editável dentro do corpo
e os olhos parecendo restituir todo o seu peso no arfar;
mais tarde, por fim o homem farto
pergunta à mulher onde é a saída, e ela
encolhe os ombros e abre os braços; foi então
que ele entrou nela e, de certa forma, sem dúvida
a mais bela de todas, nunca mais saiu;

 

 

COMUNICAÇÃO


Para Albano Martins

 

pões uma pausa à volta de cada palavra.
em cada pausa circular colocas uma porta.
convidas outras palavras para irem ao encontro
dessa pausa, dessa porta.
cada palavra tem, então, dentro de si
outras palavras.
ninguém sabe. mais tarde, pões uma distância
à volta de cada palavra.
algures a meio, colocas uma janela. desafias
outras palavras para taparem essa janela
com os seus significados mais primitivos, de modo
a se não permitir a interrupção dessa distância.
ao longe ninguém dará por isso.
erradicas do teu vocabulário a palavra
«nomeadamente».
sabes que os poemas secundam a vida
e por vezes vão para além dela.
mais tarde, comunicas com o teu amor
mais distante.
envias uma carta. telefonas. mandas mail.
és experiente e superior porque te soubeste
condicionar de múltiplas maneiras.
sabes que o amor é a menor distância possível
entre dois seres vivos.

 

Poemas de "Relevo Móbil Num Coração de Tempo"
de Tiago Nené
Lua de Marfim, 2012

postado pelo Casa dos Poetas às 19:37
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